Sexta-feira
De noite, o trabalho de Artur era pesado. Tanto é que até apelido ele ganhou, afinal, fotógrafo legista da polícia não pode simplesmente se chamar Artur da Silva de Jesus. O pessoal da repartição o chamava de Gil Grissom, alcunha que o tímido João não só gostava, como também passou a adotar no seu dia-a-dia.
O dia começa cedo, aliás. De manhã ele dormia, de tarde era atendente numa locadora do bairro e de noite ele fotografava os mortos. Não interessa onde ou o porquê, sempre chamavam Gil para fotografar as vítimas de homicídio e quase nunca mortes duvidosas ou simplesmente naturais. O fotógrafo empunhava com orgulho uma Olympus OM-100, uma máquina um tanto quanto ultrapassada, mas que dava resultados impressionantes. E foi com ela que ele trabalhou numa noite quente de janeiro, numa casa suja no subúrbio ferroviário de Salvador.
- Parece ser gringo. Tomou uma porrada forte aqui na nuca, tem marcas de agressão nas pernas também... Gil, fotografa bem aqui na boca, ó.
- Hm... Pronto, Freitas. Mais algum lugar? Tem ainda a morena gostosa no segundo andar, lá em cima na laje que...
- Porra, Gil... Gostosa? A mulher toda estropiada, e você ainda tem tempo de chamar a mulher de gostosa? Pervertido do caralho!
Gil era assim: bem frio no seu trabalho, a ponto de achar uma mulher esquarteja gostosa e tirar as fotos sem o maior problema. Foram essas fotos, aliás, que renderam uma boa grana a Artur. Na locadora, ele vendia as fotos a um sujeito estranho de nome Alvinho. Era um trabalho sujo, é verdade, mas quem tem ética nessas horas? Alvinho era dono de um site de podreiras bizarras e as fotos do fotógrafo legista eram o grande chamariz do site, que no momento já batia a casa de 70 mil visitas por dia. Ninguém da polícia tinha sequer desconfiado ainda e Artur faturava alto. E nem parecia, já que o rapaz guardava tudo numa caixinha debaixo do armário fedido de sua casa em Amaralina, um quarto-sala minúsculo com vista para o mar. O que fazer com o dinheiro nem ele mesmo sabia, mas tinha consciência que era preciso guardar para algum momento de necessidade. Quem sabe um carro. Não, ele era mais do tipo de comprar uma moto.
Dinheiro para o bar ele tinha. Toda sexta-feira era dia da cerveja gelada e pagode no bar perto da repartição. O local era conhecido como antro de policiais, mas até que era freqüentado por mulheres também. Foi uma dessas que Gil (ele adorava o nome) conheceu uma morena, lá pelas tantas e depois de tomar 10 garrafas acompanhado de Molina. Márcia o nome dela. Belo exemplar do sexo feminino; era do tipo de mulher que o cara se pergunta dez vezes por que estaria dando mole justamente para ele. Mas não, não era esse o caso do Gil versão bêbado, que vangloriava-se aos quatro cantos ser policial, muito embora nem arma tivesse. Foi com esse papo que Márcia caiu no colo de Gil já no táxi de volta para casa. A masturbação no caminho rendeu bons momentos de prazer na cama, no sofá e na cozinha de casa.
O sábado seria mais um dia, se não fosse pela presença de Márcia. Mulher estranha aquela. Pouco falou e quando abriu a boca foi pra dizer que estava de caso com um gringo, um alemão alto e forte, que ela vem se encontrando frequentemente nesse verão. Foi embora ainda cedo, muito antes do almoço. Gil nem se lembrava do motivo pelo qual ela ficou com ele, mas isso não importava. Ainda no banho se masturbou pensando na noite que teve com a bela mulher.
A madrugada de segunda-feira foi novamente agitada. Outro assassinato no subúrbio – e novamente um gringo e uma linda mulata. Lá estava Gil com a máquina em punho e tirando fotos de todos os ângulos possíveis. Tudo natural e a polícia nem estava dando muita atenção para o segundo caso seguido em uma semana. Nem Gil, mas o rapaz logo se viu atordoado quando passava as fotos para Alvinho. No trocar de fotografias, ele percebeu uma curiosa semelhança: as duas eram mulatas, tinham tatuagem de lótus na nuca e foram assassinadas juntamente com estrangeiros. Não demorou muito para ele correr no site e rever as fotos da semana anterior, confirmando assim uma perigosa constatação: Márcia era uma vítima em potencial, se é que os casos tinham ligação.
Meio avesso a coincidências, Gil esperou ansiosamente o telefonema de Márcia, já que ela não atendia a suas ligações. Mas ela estava sempre no bar na sexta-feira, então era só esperar. E foi assim a semana toda, numa preocupação que ele nunca tinha sentido. Alguma coisa havia ali e ele queria se afastar do pensamento de perder o bom sexo que a mulata Márcia fazia com ele.
Na sexta, dia em que saía à meia-noite, o dia não terminou como deveria. Gil já se preparava para descer do prédio quando um chamado foi atendido por Freitas: mais um caso de homicídio no subúrbio da cidade. Gil tremeu. Chegando lá, novamente a mesma situação dos crimes anteriores: gringo e mulher brutalmente assassinados. A mão do fotógrafo nunca havia titubeado um momento sequer em toda sua carreira, mas quando viu o belo rosto de Márcia a vertigem lhe atingiu em cheio. Rodou tonto pela sala da casa e foi parar na janela, vomitando todo hambúrguer e coca-cola da noite. Quem tirou as fotos no dia foi o próprio Freitas e Gil foi levado à enfermaria da polícia. Nem precisou sair de lá. No local do crime foi encontrado duas fotos dele e seu número de telefone anotado num pedaço de papel. Juntando o fato deles terem sido vistos juntos uma semana antes, sinais de agressão na moça e outros detalhes técnicos, a polícia prendeu preventivamente o rapaz.
Sem chance de se explicar. Foi assim que ele se sentiu. E também sem o amor e o sexo de Márcia, a misteriosa mulata que sai com gringos. O dinheiro guardado, que poderia ter sido para comprar uma moto, foi usado todo com advogados na tentativa de provar que ele nada tinha a ver com o acontecido. Provou que foi vítima do acaso, de estar no lugar errado na hora errada.
Só lhe restou o emprego na locadora, que alugava bastantes Box de seriados americanos. Artur olhou reticente para um deles. Estava lá escrito: “CSI: Las Vegas”. No verso, o nome de um dos personagens principais: Gil Grissom.
- Aqueles filhos-da-puta da polícia precisavam me sacanear desse jeito?
2 comentários:
Legal!
Que tal mudar o nome da séria para "CSI: Salvador"!
Muito bom, Rodrigo! Ótimos contos!!!
Postar um comentário