segunda-feira, 5 de maio de 2008

Há mais de 30 anos

Deco acordou com um sentimento estranho naquele sábado de manhã. Tava afim de uma cerveja. Olhou o relógio que marcava 7h37, um horário um tanto quanto estranho pra uma gelosa. Pigarreou, puxou o cigarro e foi à janela. “Sábado de merda”, pensou o nobre Deco. Antes de tomar o café lembrou que deveria cortar o cabelo, afinal já fazia quase dois meses que sua juba não via uma tesoura.

Lá pelas 8h30 vestiu a roupa e decidiu dá uma passada na velha barbearia de Seu Renê, um velho já meio sem coordenação motora que tinha passado o ofício para o filho, Renezinho. Ele sim cortava o cabelo como ninguém, mesmo com apenas 30 e poucos anos. Se bem que no caso de Deco era só uma máquina 2 e umas ajeitadas e tava tudo certo.

- Bom dia aê Seu Renê, como é que vai essa força?

- Tudo beleza, Deco. Tem tempo hein!?

- Rapaz... Tempo cuma porra. O cabelo chega ta dando volta. Um mullet da zorra!

- “Mu” o que?

- Essa porrinha aqui atrás, ó... Fica dando volta esse cabelo desgovernado. Mas tô aqui pra dá um jeito nisso.

- Beleza, decão. Senta ai... Tô dando aquela velha garibada antes de abrir, é só esperar um pouco.

- Hm... Cadê as playboy? Já tem a desse mês?

- Tá ai... Se o Juvenal num levou pra casa, amém... Mas tá ai sim.

- Ah, tá, beleza... Vai demorar ai? Cadê Renezinho?

A pergunta ficou no ar. Seu Renê fingiu não ter ouvido e continuou varrendo os cabelos do chão do dia anterior. Estranho. Minutos depois Renezinho entra na barbearia.

- E ai Renezinho, como é que tá meu velho?

- Tudo em paz, decão. Que é que cê manda tão cedo?

- Porra, Renezinho... É óbvio que vim aqui cortar meu cabelo. Tá grande, ó.

- Oxe. E com quem? Eu tô fora. Painho te falou não?

- Fora de que rapaz?

- Fora daqui, oxe. Tô lá em Messias na Paulo VI.

- Saiu daqui foi? Que porra é essa Renezinho?! Sair daqui da barbearia pra ir praquele salão de mulherzinha cortar cabelo de playboyzinho... Tá aviadando é?

- Playboyzinho que paga muito melhor, otário. Quero morrer de fome aqui eternamente não. Comendo esse mingau de Zuleide e a quentinha de Dona Maria não. Tá louco.

- Ofenda elas não que são de respeito.

- Né ofensa não. Lá mesmo em Messias ele pagou até um adiantamento pra mim. Tava precisando.

- Precisando o que Renezinho!?... Sua clientela toda aqui e você se muda pra outro canto. Seu pai, ó paí.. Rapaz, tu tá ficando é doido. Onde é que vou cortar cabelo agora? Longe pra caralho daqui de casa.

- Juvenal corta bem.

- Juvenal é uma merda. Corta parecendo jardineiro e mal sabe usar gillete quanto mais uma tesoura. Mas... Porra! Sabe quanto tempo corto aqui na barbearia? Contando com seu pai e agora com você? Lá se vão mais de 30 anos.

- É mermo?

- É sim. Nunca mudei nesse tempo todo. Já tô casado pela terceira vez, tive dois filhos, mudei de casa aqui mesmo no bairro, troquei de emprego umas 10 vezes... Mas, porra!! De barbearia eu nunca mudei. Tô ai com vocês mais de 30 anos!

- Pô, Deco, assim até ficou chateado, mas num posso fazer nada.

- Renezinho, você tá dando mole. Aqui é seu lugar. Eu troco de mulher e tudo mais, mas trocar de barbeiro, de time e de buteco é foda, mermão... Troco não. Mas você indo pra longe assim vai ficar complicado.

Deco ficou chateado, é verdade. Enquanto conversava viu o buteco de Freitas abrir na frente da barbearia. Foi lá falar com Seu Freitas, dono do bar que Deco freqüenta há mais de 30 anos. Minutos depois de conversa ele voltou. Convenceu Renezinho a cortar pela última vez seu cabelo ali na Barbearia de Seu Renê.

De tarde Deco ouvia o jogo pelo rádio com o humor abalado. Seu time foi goleado e então desceu pro Freitas pra tomar aquela gelada. O bar num era mais o mesmo: dos tempos de ouro de seresta e muita mulher à atualidade de putas e travestis decrépitos que habitavam o local. Decepção.

Dois meses depois, nosso amigo resolveu que era hora de cortar cabelo novamente. Desceu do prédio e passou pelo bar do Freitas e cumprimentou amigavelmente, como sempre fazia: “E nosso time, hein?! Esse ano vai!”. Com a crença renovada ainda, Deco seguiu ao ponto de ônibus. O destino era o salão chique de Renezinho. Ninguém cortava cabelo como ele.

3 comentários:

Anônimo disse...

O que fica são os interesses.
...

Gustavo Castellucci disse...

Gileno...

Paulo Bono disse...

barbearias...
corto o resto do meu cabelo com
umas coroas que cortavam o cabelo de meu pai quando ele estava no colégio militar.

abração.