sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Réquiem

Em 2005 eu fui pela primeira vez à Bahia. Aportei inicialmente em Ilhéus e depois em Salvador, uma terra linda. Não sei como as pessoas podem reclamar de morar lá. Eu adorei, principalmente porque conheci um rapaz muito engraçado, de óculos de astes vermelhas e um sotaque diferente. Parecia que não era de lá.

Mas era. Eu sou surda e ele cego; vocês já podem imaginar como era difícil me comunicar com ele. Zé adorava conversar e contar casos para um monte de gente, mas justo eu, que gostei tanto dele, não podia ouvir uma palavra sequer. Fico emergida na minha imensidão calada, presa em meus pensamentos e no que vejo.

Desde que nos conhecemos, nós trocamos cartas. Como ele perdeu a visão ao longo da vida, ainda restava-lhe um pouco de habilidade para escrever. A grafia de Zé era terrível, mas quem liga? Eu ficava apreensiva esperando as cartas chegarem. Elas nunca foram muito freqüentes porque eu viajo muito e fica difícil precisar quando estarei em determinado local. Mas nós tentamos. E foi assim que eu comecei a receber correspondências dele. Primeiro na Argélia, depois na Argentina, Estados Unidos, Guatemala e muitos outros lugares. Eu gosto quando ele descreve o terminal.

O terminal na visão dele é um zoológico humano, cheio de entidades vivas com histórias de vida das mais estranhas possíveis. Ou não, a normalidade da vida delas é que as torna tão peculiares e diferentes. Eu prefiro pensar assim, embora Zé não concordasse comigo. Ele defendia uma história do início ao fim sem mudar uma vírgula sequer, e não gostava que quem quer seja ficasse fazendo confabulações filosóficas. Eu então deixo para mim mesmo.

Nesse verão então foi minha oportunidade de vê-lo. A única em anos. Eu confesso que não sei como ele soube da minha chegada, mas, para minha surpresa, a minha surpresa foi em vão. No dia que eu aportei em Salvador fui direto ao terminal marítimo. Lá estava ele, sentado em seu banco de madeira, sozinho, mas com cabelos penteados e algo embrulhado nas mãos. Ainda fiquei uns minutos observando Zé de longe, com toda sua inquietude, mas também com sua elegância de sempre. Gelei, e confesso que não sei por quê.

O encontro foi ótimo e tranqüilo, com muitas dificuldades na comunicação. Preferimos simplesmente ficar sentados, um ao lado do outro, observando quem passava. Essa, aliás, era a tarefa preferida dele e eu sabia porque já me havia contado por carta. E me contou muitas histórias, que enfim eu pude ver naquele dia no terminal.

Olhei para todos os lados à procura de Luzia, a lavadeira. Não vi ninguém com a descrição que ele me deu. Procurei também Geraldo, o homem das mil sacolas que entregava a um monte de gente. Nenhum sinal. O que dizer então de Memé e os vários travestis que Zé achava bonitos? Nada. Homens do cais eu até vi, mas nenhum com a opulência e a brutalidade de Alemão. Foi até um pouco frustrante, mas nada que abalasse a minha admiração por Zé.

Hoje, no dia do seu enterro, eu entendo perfeitamente tudo que lhe consumia, tudo que lhe corria pela mente e tudo que lhe movia. Lendo a última carta que ele me enviaria – ficou pronta e endereçada, mas não chegou a mandar – mais fatos ficaram claros. Luzia era sua mãe, mulher batalhadora e forte que não poupava esforços para dar o melhor aos filhos. Geraldo era o tio, que também foi importante na vida do rapaz, sempre presente nas horas mais inglórias, assim como o primo Memé, que sabia muito das coisas porque lia enciclopédias encontradas no lixo. Os travestis formavam o imaginário do rapaz porque existia um bordel cheio deles ao lado da casa da família de Zé. E Alemão era o pai, sim, um pai distante e cheio de mistérios, mas que nem por isso Zé deixava de nutrir um carinho especial.

Não, ele não disse isso na última carta. Eu é que sou ousada o bastante para tentar ver o mundo como só ele conseguia.

5 comentários:

Sandra Costa disse...

é isso que está faltando ao mundo.
ousadia pra ver o mundo com outros olhos.
mas as pessoas só o enxergam com os próprios olhos... e fazem do que vêem a sua verdade.
triste, triste...

Paulo Bono disse...

muito bacana a idéia, Carreiro.

aquele abraço

Sunflower disse...

Há, lindo!

Anômima disse...

Um boa continuação ao conto anterior. Mas ela podia ler lábios, lembra aquele filme que o Gene Wilder era surdo e o Richard Pryor, cego? Passava sempre no SBT e era bastante engraçado. Ah, anos 80...

Anônimo disse...

hastes com h