segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Dois Sentidos

Sentado nesse banco de madeira eu vejo muita gente. A maioria eu até conheço, mas poucos falam comigo. O pessoal do terminal passa geralmente muito rápido, muito mais preocupados com o que vão encontrar do outro lado. Na verdade, sempre sabem; e esse é o problema.

Eu vendo coxinhas e outros salgados no terminal. Suco. Tem suco também, mas sempre tem uns desavisados que perguntam se tem refrigerante. Não, não tem refrigerante. Os sucos dependem da estação, mas também tem sempre uns desavisados que perguntam pelos sucos mais absurdos possíveis. Não vendo isso. Eu vendo esses salgados gordurosos que tapam o buraco do estômago de estranhos em busca de refeições para saciar de verdade a fome.

Daqui eu vejo muitos passarem. Tem a Luzia, uma lavadeira negra e forte que cruza o mar todo dia para lavar roupa na cidade alta. Primeiro ela pega o Ferry Boat* em Vera Cruz, passa 40 minutos chacoalhando no mar, salta aqui no terminal, anda mais uns 15 minutos, sobe o Elevador Lacerda, anda mais uns 40 minutos e chega ao local de trabalho. A volta é o caminho inverso, exaustivo, mas ela sempre tem tempo de passar por aqui na lanchonete e comprar uma carteira de cigarro. Eu acho que ela fuma uma carteira por dia. É muito.

Muito mesmo é o número de sacolas que Geraldo traz semanalmente nas mãos. É impossível precisar quantas, já que elas se amontoam de uma maneira incrível e se misturam num balé mambembe. Ele distribui algumas para os camelôs do terminal e segue viagem em direção à ilha, qual eu não sei. Segue sempre com um sorriso no rosto, a camisa aberta no peito e dezenas de santinhos pendurados. Eu acho que ele é um homem de fé, como se dizem.

É engraçado que Memé não deixa de vir aqui pelo menos uma vez na semana. Roda o terminal todo, analisa cada vendedor, cada segurança... E roda mais um pouco. Depois de horas nesse ciclo, ele senta do lado de alguém vendendo café e toma um atrás do outro. Fala de trivialidades cotidianas e carros. Pela aparência, parece que nunca entrou num carro, mas fala deles com uma propriedade magnífica. Um dia até eu fiquei ouvindo ele comparar os carros antigos com os de hoje, potência de motor, arrancada, freios e tudo mais. Eu acho que ele lê revistas do gênero.

O balaio de gêneros é grande por aqui. Vejo sempre travestis e outras figuras andróginas em busca de gringos, e isso acontece muito no verão. Cruzam mais do lado de lá da ilha, vindo cá para Salvador sedentos por sexo. Artur – creio que seja o nome dele – é um deles. Faz todo o caminho se rebolando e chega até enganar alguns homens desavisados. É realmente bonita, artisticamente falando. Uma vez parou aqui e comprou duas coxinhas, um quibe e dois copos de suco. Devorou tudo em menos de 5 minutos, numa voracidade só comparada aos homens do cais. Eu acho que esse é o único lado masculino dela.

Os homens do cais, aliás, são muitos. Eles vêm e vão, se misturam na multidão que na maioria das vezes não dá nem para diferenciar. São altos e fortes, obviamente, mas nenhum comparado ao negro Alemão, apelido ganho num trocadilho com a sua cor. Come geralmente três coxinhas, arrota, cospe no chão e puxa o cigarro. Depois de acender, olha para os lados e chama alguma mulher de gostosa. Eu só acompanho com os olhos o ritual do rapaz, que sempre se esquece do suco. Eu aviso, mas ele diz: “põe na conta. Um dia eu vou cobrar, categoria”. Eu acho mesmo que um dia ele vem cobrar.

A sexta-feira é o dia mais cheio. À noite, sempre por volta das 19h, eu sempre avisto Verdade. Ele é alto, mas tão alto que tem pernas descomunais de tão grande, o contrário da mentira, que tem pernas curtas. Sempre apressado, Verdade carrega uma sacola na mão e um ramalhete de flores na outra. Olhando de longe, ele faz o tipo marido modelo, mas já ouvi histórias das mais cabeludas a respeito dele. Dizem que as flores são para mulheres diferentes, que ele tenta agradar num bordel em Itaparica. Outros dizem que é para a esposa, que fica na ilha enquanto ele trabalha em Salvador durante a semana. Eu acho mesmo que Verdade deve fazer jus ao seu nome.

Nome mesmo de grande valor e peso na Bahia tem um velho gordo e de bigode que passa por aqui em muitos fins de semana do ano. O ritual dele é sempre parar na frente do terminal e tomar uma cerveja, enquanto fala ao celular. Depois, entra no terminal com sua maleta e uma sacola, balançando para lá e para cá, arreia os fardos no chão e pede um risole de camarão. Se ele soubesse de onde vem esse camarão, duvido que voltasse a comer. Nem eu sei. Eu escolho o mais velho e borrachudo, mas o velho gordo nunca reclama. Deve ter dor de barriga todo fim de semana, mas duvido que descubra que é devido ao camarão estragado. Ele come demais. Além daqui, ainda vai no crepe de Dona Maria e no churros de Seu Evaldo. Eu acho que no caminho ainda come um pouco mais.

E lá de longe eu vejo um navio grande apitar. Nessa época do ano, em janeiro, alguns cruzeiros internacionais cruzam mares e ondas mundo afora e aportam aqui. Alguns são corriqueiros, como esse que acabo de ver aportar perto daqui. É azul. O mesmo de todos os anos. Nele a minha esperança.

Sentado nesse banco de madeira eu vejo muita gente. Eu vejo na minha mente, porque sou cego. No navio que chega agora, eu deposito minhas esperanças de rever uma amiga linda e de olhos verdes. Só ela me entende; é surda.

7 comentários:

' Rôh disse...

Nossa! Que mágico, o cara tem muita imaginação... Adorei todas as descrições. XD

Abraço, Roh

Anômima disse...

Muito bom o conto. Parece até que vc conhece cada uma das figuras e quis homenageá-las através do atendente de lanchonete cego.

Paulo Bono disse...

genial, Carreiro. genial.
e você ainda diz que o "Ó pai ó" não existe.

abração

Anônimo disse...

Genial, realmente...
Da pra se perder nessas metáforas... que as vezes nem sabemos se são metáforas, essa é a magia.

Ramon Pinillos Prates disse...

Eu já trabalhei no Comércio, tenho uma boa noção do ambiente dessa história.

Sandra Costa disse...

putz, que maravilha!
supreendente o último parágrafo.

bravo! bravissimo!

Sunflower disse...

Tá, chorei.