quarta-feira, 13 de agosto de 2008

A maçã e a vingança

Tudo começou quando Rosa ainda era Rosa, e não Dona Rosa, como a maioria das pessoas a chama. Ela tinha uma pequena mercearia na Cidade Baixa, ali perto da Calçada, um lugar que de tão pequeno ganhou o nome de “Mercearinha”, mais tarde ficando Inha. “Vou ali em Inha”, era o que o povo dizia quando precisava comprar leite ou manteiga na mercearia de Rosa. Foi naquela época que ela começou a desenvolver essa mania.

Rosa tinha o estranho hábito de conhecer as pessoas pelo que elas compravam. No seu estabelecimento era mais complicado, pois tudo que lá vendia era de necessidade básica, portanto, de acesso a todos. Mesmo assim ela adorava observar. Sabia que Seu João só levava manteiga dia de quinta-feira, que Tuísca comprava leite dia sim dia não, que Dona Marilda não comprava nada e só ia lá para bater papo.

Rosa casou, mas sua mania continuou. Desistiu de ganhar a vida com mercearia e acabou virando dona-de-casa. Seu marido, Arnaldo, trabalhava em um banco na Graça e eles moravam em Brotas. Ela adorava dizer que morava em Brotas porque ninguém sabia ao certo em qual “Brotas” ela morava: se na parte pobre ou na parte rica. Melhor assim. Lá era o bairro ideal para Rosa, que fazia compras cada dia num supermercado diferente. Dos menores aos mais sofisticados da vizinhança.

A dona-de-casa passeava todos os dias com sua bolsinha e ia direto ao mercado. Comprava de pouco em pouco para ter a obrigação de ir todos os dias a algum mercadinho. Passava horas observando quem comprava o quê, em qual quantidade e em qual companhia. Sabia de longe se a pessoa era solteira; os solitários compram mais comida pronta e bobagens, como chocolates e salgadinhos. Se a pessoa era casada era fácil: sempre tinha no carrinho algum produto do sexo oposto, como barbeadores ou absorventes. Quem tinha filhos acabava sempre comprando alguma coisa para eles, ou então optava por produtos com marcas de temas infantis, como maçãs da Turma da Mônica ou algum congelado da Disney.

Gostava mesmo era da seção das frutas. Homens não compram maçãs nem pêras, pensava Rosa. Mulheres cheiram tudo, amassam limões e laranjas à procura da fruta perfeita. Homens jogam tudo de qualquer jeito. A cerveja sim, eles escolhem com gosto. O primeiro sinal se o rapaz é pobre, ensina Rosa, é saber se ele escolhe a bebida pelo preço ou pela própria vontade. Tem gente que compra uma cerveja diferente a cada semana. Rosa observava Durval, um figurão da região, que sempre comprava cerveja de uma marca específica, de um nome estrangeiro enrolado que ela não conseguia ler. E levava também salame, mussarela e muita carne de corte especial. Esse era rico e bonitão, pensava Rosa. Corria para ver o carro dele na saída e se vangloriava ao perceber ser um importado.
Rica ela não era e ficou pior quando Arnaldo perdeu o emprego. Depois de meses sem arranjar nada, a única solução foi ela própria procurar trabalho. Nem precisou pensar muito quando viu um anúncio de uma rede de supermercados de Brotas. Virou rapidamente gerente de seção, aquelas mulheres que ficam com rádio organizando as seções de alimentos e mandando nos pobre coitados que empilham tudo direitinho. Mas ela era uma chefe boa.

Como Arnaldo ainda não tinha arranjado emprego, a situação financeira da família estava cada vez mais complicada. E o desespero só não se abateu por completo porque Rosa é uma mulher sagaz. Propôs um negócio a seu marido que, de tão absurdo, poderia até dar certo. Como ela conhecia todas as pessoas do mercado, mas sem elas a conhecerem, Rosa sabia exatamente como pegá-las de surpresa ou, mais grosseiramente, como roubá-las.

Arnaldo negou no começo, mas viu que não tinha outra solução. O negócio estava armado: Rosa acompanhava a vítima dentro do mercado, vendo pela compra qual a procedência da pessoa, sorrateiramente via qual era o carro e falava por telefone a Arnaldo. A partir daí o marido tinha apenas que seguir e arranjar um jeito de roubar.

Inicialmente o casal escolhia as vítimas de duas maneiras: mulheres sozinhas ou mulheres acompanhadas de criança. Mas só se elas comprassem coisas caras, e ai é que Rosa identificava. No estacionamento subterrâneo elas se distraiam facilmente e na maioria das vezes Arnaldo se oferecia para ajudar a pôr no carro. Nesse vai e vem do carrinho para o porta-malas, vários sacos eram desviados e pronto: o casal já tinha o que comer por uma semana e a pobre mulher só ia descobrir quando chegasse em casa.

Como já estava ficando fácil demais, Arnaldo pegou o gosto da coisa e incrementou a tramóia. Depois de ter certeza (através de informações de Rosa) de que uma determinada pessoa estava a pé e morava sozinha, Arnaldo seguia a vítima e em certo momento esbarrava “sem querer” nela. Como todos os sacos iam pelo chão, ele humildemente pedia desculpas e se oferecia, sem aceitar um “não” como resposta, a levar as compras até o destino final.

Chegando à casa, o golpe fatal era fácil. Como na maioria das vezes era uma Senhora (e ele provavelmente vai pagar seus pecados no inferno por isso), ele a enrolava e acabava ficando para tomar um café ou se oferecia para fazer um curativo decorrente do esbarrão; às vezes as pobrezinhas iam ao chão. E aí, com todo cuidado, ele roubava de tudo: faqueiros de prata, cristais, liquidificadores e muito dinheiro. Percebeu que todos tinham um esconderijo que aparentemente era infalível, mas quase sempre era fácil de descobrir. A dupla já tinha seus métodos friamente calculados e seus golpes eram de execução perfeita. Sem falhas.

Essa semana um rapaz esbarrou em mim na rua. Eu cheguei a cair e minhas compras foram ao chão. Minha cerveja estourou. Mas o rapaz era solícito e foi até meu apartamento me ajudar. Foi lá que eu prendi esse filho da puta, o Arnaldo. Foi de lá que ele ligou urgente para Rosa, uma vadia sem escrúpulos que veio correndo. Os dois estão na minha sala no momento imóveis, presos por cordas e amordaçados. Antes, contaram a mim essa história patética. Antes de matar os dois vou comer uma maçã da Turma da Mônica.

15 comentários:

Mwho disse...

Rodrigo,
Cuidado com o lixo da sua casa! Alguém pode estar estudando seu estilo de vida...

Anônimo disse...

Belo texto, Castor. Me lembrou algo de Rubem Fonseca!!!
Abraços!!!

Anônimo disse...

Rodrigo, seu louco, que história maluca de primeira, vale uma filmagem, um curta-metragem.
Curto ler o que tu escreves, assim como o Bono, porque vocês colocam a identidade da cidade onde vocês moram no texto, tem um endereço, saca? histórias com CEP. Num dia que eu for visitar a Bahia vou poder dizer "ei, esse lugar aqui é onde se passa aquele conto do Rodrigo", e acho isso muito bacana.

é isso

Alvarêz Dewïzqe

Sunflower disse...

sensacional, sensacional.

Adoro ser surpreendida e, apesar do tema, a estória era tão singela, não previ o final por nenhum instante.

Sunflower disse...

a vc curtiu o sm novo do coldplay? eu já não gostava antes, não melhorou com a fase "mano" do Chris Martin

beijaaa

Rodrigo Carreiro disse...

mwho, to preocupado ehheheh
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Sandro, eu meio que percebi isso. Lembra daquele livro dele que você me deu num certo amigo secreto da faculdade (há aaaanoos)? Pois é, tem um conto lá que tem um final parecido. Fica como homenagem a Rubem. Pronto.
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Sun, sobre o final: nem eu previa hehehe
Sobre o Coldplay, eu sou fanático pelos dois primeiros discos. O terceiro é fraquíssimo e esse novo é razoável. Ainda estou tentando digeri-lo, mas tá difícil.

Rodrigo Carreiro disse...

Alvarez: fico feliz. Quando vier a Salvador você vai conhecer a VERDADEIRA cidade comigo e Bono eheheh

Mwho disse...

Rodrigo,
Monte um pacote turístico com o Bono que eu vou ser um dos primeiros a comprar!

george araújo disse...

ô
nem me fale!
rs

>>

Anônimo disse...

Essa história é muito emocionante. A vingança ??? Já tenho ela dentro do baú dos meu sentimentos... falata apenas comprar a maça.
BjoOo Conterrâneo *

Anônimo disse...

falta*

meus instantes e momentos disse...

vindo conhecer teu blog. Vai virar mania voltar. Parabens. Tenha um belo final de semana.
maurizio

Marcio Melo disse...

Cada vez melhor seus 'contos' . Sensacional, parabéns

Larissa Santiago disse...

Rodrigooooooooo
dá um saculvanco* nesses dois!

*gírias de minha mãe.

Caio Miniaturas disse...

Psicose frugal. Tem sabor. Gostei da narrativa, parabéns. Abraços.

ALBERGUE MENTAL
http://caioalbergue.blogspot.com